Expedição Atlantis e a conexão com o azul profundo
Outubro 1, 2020
Tempo de Leitura: 9 minutos

 

Por Juliana Marinho Pires in WWF-Brasil

Em tempos de pandemia mundial, em que o planeta parece nos querer mandar um recado sobre o nosso estilo de vida, que inclui a forma como consumimos e exploramos os recursos naturais disponíveis, um alento: há gente por aí que busca interagir com outros seres vivos, olhando a natureza como um ser completo e integrado, ao buscar a conexão intrínseca com ela. Afinal, os seres humanos não estão acima de tudo e, sim, formam parte do todo. É hora de recuperar o tempo perdido.

No dia 1º de outubro a Expedição Atlantis completa um ano. O projeto que escolheu como cenário o Arquipélago dos Açores, conjunto de nove ilhas de Portugal, no meio do Oceano Atlântico, trouxe essa percepção artística e sensorial da reconexão com a natureza. Durante nove dias, dois veleiros -Jochi e Tolui- saíram da maior ilha dos Açores e também sua capital, São Miguel, rumo a uma aventura que incluía a passagem por outras três ilhas -Santa Maria, Terceira e Pico. No total, participaram 13 especialistas selecionados de diferentes perfis que se conectam profundamente com o oceano em suas áreas de atuação, incluindo a tripulação.

Essa experiência foi concebida pelo projeto português Oceans and Flow, idealizado pela produtora Violeta Lapa. É um projeto que pesquisa o movimento aquático em seus diferentes níveis, que envolvem terapias, mergulhos, interação com espécies marinhas, buscando a conexão com si próprio utilizando a água com fio condutor. Há cinco anos, Violeta mal sabia nadar e uma primeira vivência profunda no mar a fez despertar para este universo. “Eu fui iniciada nesta dança, que explora o movimento autêntico, em apneia, uma dança que começa na superfície e mergulha no profundo, tanto no mar, como em piscinas”, descreve Violeta.

Nestes últimos anos, o Oceans and Flow já conectou 98 pessoas de 27 países em jornadas pelo mundo aquático. O Oceans and Flow já passou, além dos Açores em algumas ocasiões, pela Tailândia, Grécia, Sintra e Parque Nacional da Arrábida – os dois últimos também em Portugal. Parceiro inseparável do projeto é o brasileiro Gustavo Neves, realizador audiovisual, fotógrafo e artista. O seu trabalho é transformar toda a beleza desse intercâmbio entre seres humanos e a água em fotografias e produções audiovisuais poéticas que são de tirar o fôlego. Uma exemplo e uma dádiva para os olhos é o filme que fez em sua passagem pela ilha de Fernando de Noronha, chamado Atobá, que você pode assistir aqui.

 

 

Equipe reunida em um dos veleiros em reunião de planejamento © Matthieu Paley 

 

Gustavo integrou a Expedição Atlantis com o objetivo de registrar os momentos vividos pelos “personagens” da aventura. O material fará parte do documentário “Song for Atlantis”, cuja função principal “é servir como ferramenta de sensibilização profunda sobre a conexão com as águas e trazer consciência sobre a nossa responsabilidade enquanto seres humanos, diante da emergência de trabalhar para a revitalização e harmonia dos oceanos”, diz.

Em virtude de um grande swell (ressaca com fortes ventos) que cruzou os Açores durante a expedição, não foi possível concretizar o plano inicial. “Quem comanda tudo na verdade é a mãe natureza, não temos mais o que fazer a não ser acatar”, resumiu o capitão Branco, um açoriano bem divertido com uma simpatia contagiante, que no alto dos seus trinta e poucos anos já deu várias voltas ao mundo a bordo de veleiros. Ao saber que a rota iria se restringir a São Miguel e Santa Maria, duas das quatro ilhas programadas, houve um misto de frustração e resiliência. A capacidade de adaptação e a aceitação do que não podemos controlar acabou sendo um dos maiores aprendizados da expedição.

Da busca incansável por esse mágico encontro com espécies marinhas, tive uma oportunidade única de nadar com arraias do tipo Móbula. Uma sensação indescritível estar na presença desses seres. Elas nadam harmonicamente, como uma coreografia em que todo o “bando” segue o mesmo fluxo, o mesmo balé. Encantada de vê-las nesse compasso, nem percebi que quando voltei à superfície para respirar, subi exatamente embaixo do barco e bati minha cabeça no casco. Nada grave. Só muita emoção mesmo.

O coração quase saltou pela boca também quanto tive um encontro mágico com golfinhos da espécie Roaz, conhecidos como “narizes de garrafa”. É muito impressionante sentir a energia que se movimentou com esses encontros, como um vazio que se preenche. Até que em um dos últimos dias a bordo recebi um dos maiores presentes da expedição: consegui ver da proa do veleiro, a pouca distância, uma baleia cachalote, que na verdade depois descobri ser um grande golfinho, olhando para mim. Trocamos olhares. E aí me senti reconhecida por ela, e a honrei. Um animal tão empoderado, completamente soberano e dono daquele espaço. Esse instante ficará para sempre gravado em meu coração como um flash de conexão com o divino. Minutos depois avistamos um tubarão baleia, um bichão grande, meio desengonçado e afetuoso, também inesquecível, assim como o azul dos mares dos Açores, profundo, vibrante e único.

A natureza como extensão do nosso corpo
Leina Sato foi uma das aventureiras que integrou a Expedição Atlantis, escolhida a dedo por seu trabalho como freediver – especialista em apneia livre – e especialista em comunicação interespécies. Leina é uma pessoa encantadora, que mora no Havaí há mais de 10 anos, e metade desse tempo interagiu com golfinhos quase que diariamente. Viajou vários mares do mundo buscando a reconexão com essas e outras espécies aquáticas no exercício de sentir como a percebiam, e não como ela, ser humano, os via.

“Existem algumas espécies na Terra que evoluíram até aqui com a ilusão de que estão separadas desse meio ambiente. Criou-se essa divisão, a natureza de um lado e os humanos do outro. A natureza está lá como uma outra ‘entidade’, que pode ser explorada, controlada. Essa rota trouxe muita confusão para a relação interespécies e uma das causas da crise ecológica que nos encontramos hoje”, avalia Lena. A japonesa teve nos oceanos o seu porto seguro e foram essas águas que a ajudaram a se curar de uma forte depressão, ainda na adolescência.

De acordo com Leina, a grande magia da interação interespecies consiste em encontrar uma forma de se conectar com uma espécie diferente da sua. “Algo que é super importante é o contato visual. A gente reconhece a presença um do outro. E quando esse contato é estabelecido, você começa a se comunicar de maneiras diferentes, por exemplo, com movimentos, danças, acenos, sons”, diz.

Atualmente, dedica sua vida a construir essa ponte de reconexão entre o ser humano e a natureza mais profunda, além de compartilhar suas vivências para inspirar outras pessoas a voltar lá atrás, na reconstrução dessas relações. “Se colocarmos nosso foco em como experenciamos a natureza, fica a pergunta de como mudar nossa relação com ela e criarmos um senso de identidade, considerando-a como uma extensão do nosso corpo. Ou seja, sentir a Terra como nosso corpo maior, que é o que ela é, na verdade. É mudar a forma como vemos e sentimos as coisas, o planeta, melhorarmos nosso futuro em comum, como espécies”.

A Ecologia Profunda (do inglês Deep Ecology), filosofia criada nos 1970 pelo ecologista norueguês Arne Næss, questiona o por quê da ciência não colocar mais ênfase nos nossos sentimentos e percepções na presença da natureza. Assim como Leina, essa filosofia acredita na humanidade como um membro de uma grande teia, mais um elemento da natureza e que também deve ser preservado assim como todos os outros elementos. A Ecologia Profunda é, segundo Næss, a contraposição à “ecologia superficial”, calcada na exploração dos recursos naturais e na visão do homem como o centro de tudo que existe. 

Um animal que Leina também tem muitas histórias de interação para contar é a baleia. E foi em busca delas, especificamente a espécie chamada de cachalote – as sperm whales -, típica nos Açores, que ela foi em busca na Expedição Atlantis. Como parte de suas pesquisas e vivências, Leina se pergunta como são os encontros agora com elas, já que antes tínhamos milhões de cachalotes no planeta, e agora nos restam em torno de 300.000 indivíduos. “Os que mergulham com elas hoje, será que sentem um senso de perdão, já que elas tiveram uma história muito difícil com os seres humanos? Ou há alguma forma de celebração que nós nos tornamos um pouco mais conscientes e não estamos tentando matá-las o tempo todo?” Questionamentos sem resposta. “É muito importante fazer esses questionamentos por meio dos olhos destes animais”, expressa.

Algo muito que tocou profundamente foi saber por meio da Leina que as baleias têm uma língua própria que passa de geração em geração há cerca de 20 milhões de anos, mesmo sem terem uma linguagem escrita. Se reconhecem e reconhecem sua ancestralidade por meio dessa língua cantada, e, ainda, de acordo com a freediver, essa consciência que elas têm nos mostra como o ser humano é vulnerável e pequeno. “Quais histórias será que elas transmitem umas as outras sobre o planeta, sobre os oceanos, sobre a interação com os seres humanos?”, se pergunta.

E por minha vez eu me pergunto se essa conexão tão essencial realmente não seria o grande antídoto para o combate à devastação ambiental que vivemos nos nossos dias. Uso aquele famoso ditado popular: o que conhecemos, entendemos, e o que entendemos, amamos. Conhecer aí equivale também a sentir e se sintonizar. Nossos antepassados já sabiam o valor disso, e essa é a razão de falarmos em REconexão. Os habitantes originários das florestas brasileiras, os índios, desenvolveram uma relação muito especial de respeito e de retroalimentação com o ambiente que lhes dá água, comida, força e morada. E antes de sermos seres da Mãe Terra, fomos seres da água nos primeiros nove meses da nossa existência. O útero de nossas mães era um oceano de possibilidades.

A busca por desafios e superação
Matthieu Paley, que também integrou a expedição, é um fotógrafo experiente da National Geographic que adora conhecer culturas distantes e extremas, em terra. Francês, já conheceu uma comunidade no Afeganistão, os Kyrgz, que desde 1972 não recebia pessoas de fora; registrou em Borneo outra comunidade que era considerada “os ciganos do mar”, os Bajau; se embrenhou em uma tribo rara na Amazônia boliviana, os Tsiname, conhecidos como “os corações mais saudáveis do mundo”. Assim como estas são muitas outras expedições e descobertas pelos olhos de suas lentes. Seu olhar autêntico e sensível registrou momentos incríveis da viagem em cima e embaixo d’água. Sua relação com o oceano também passa por reportagens sobre a poluição plástica e a pobreza de comunidades ribeirinhas.

Já o outro fotógrafo que integrava a expedição, o belga Jean-Marie Ghislain, dedicou os últimos anos da sua vida a interagir e registrar tubarões mundo afora, parte do seu projeto Shark Revolution (revolução dos tubarões, em português). O fotógrafo até 12 anos atrás tinha medo do mar, até que um amigo mergulhador o convenceu a vencer esse medo em um mergulho no México. Aos poucos, com o contato em especial com tubarões, foi vendo seu medo se transformar em fascínio. Sua vida mudou completamente.

“Nós herdamos uma história, e essa história passou de geração em geração. Sempre há alguém que teve um incidente com tubarões, então esses animais não contam com uma boa reputação”, disse Jean-Marie. Ele acredita que os tubarões só intimidam, não têm maior intenção do que essa, quando alguém invade o seu território. “Por que essa relação se apresenta assim? Para criarmos mais medo do que já temos? Noventa e nove porcento dos tubarões não ligam para os seres humanos, quem precisava vencer o medo era eu”, analisa.

Em seu projeto, que derivou em um livro fotográfico chamado Shark, fear and beauty (Tubarão, medo e beleza, em português) dá para notar o enamoramento de Jean-Marie pela forma desses animais e a beleza pela sua simetria e forma. É uma mistura de ode a beleza com a emoção da arte do encontro entre o observador e o observado. Ao todo, ele já mergulhou mais de 1.100 horas com tubarões em diversos oceanos. Jean-Marie me marcou como um exemplo de que nunca é tarde para superar medos e empreender descobertas pessoais por meio do contato com o desconhecido.

Outro amante dos oceanos e das interações com seres marinhos que esteve os nove dias conosco a bordo do veleiro foi o brasileiro Henrique Pistilli. Conhecido como Homem Peixe, a sua paixão está nas ondas. O coach, facilitador e artista mora na ilha de Fernando de Noronha há 10 anos e criou uma nova profissão: o seacoach, trabalho de autoconhecimento, gestão de vida e carreira de pessoas por meio da interação com o mar e as ondas. Tudo isso sem prancha, vai no peito mesmo. “Desenvolvi o método peixe, que combina a superação do medo na água com a imitação profunda dos animais que vivem embaixo d’água, utilizando conceitos da fenomenologia e da antroposofia”, diz.

Fenomenologia entende o mundo como algo vivo e em constante movimento. Segundo essa metodologia e filosofia, é por meio da observação consciente e intensa de todo o ser vivo que criamos uma relação com ele, e assim nos entregamos a uma interação aberta e de troca com a natureza, o que deriva dela, as pessoas e nós mesmos. Pistilli também já foi embaixador do WWF-Brasil pela causa dos oceanos.

Mutirão de limpeza de praia durante a expedição na ilha de Santa Marian © Matthieu Paley

Ocean Talk
Alguns dias após a expedição nos reencontramos na Universidade dos Açores para contar a estudantes de diferentes áreas a nossa relação com os oceanos e trazer perguntas e insights. Esse foi o Ocean Talk, há exatamente um ano, Dia da Água em Portugal, encontro pioneiro que marcou o fechamento dessa jornada mágica pelo interior de nós mesmos, pelo mundo desconhecido de novos ambientes – aquáticos e terrestres –  pelas novas pessoas e as  bagagens que carregam.

Minha conversa girou em torno da Pegada Ecológica, ferramenta da Global Footprint Network que mede a pegada que os seres humanos deixam no planeta e tem a ver principalmente com o nosso estilo de vida –que inclui consumo, uso de transporte, dieta alimentar, moradia; a importância dos oceanos em números e a ameaça da poluição plástica e os principais agentes de transformação da nossa atual realidade.  

O evento, que contou com cerca de 150 estudantes, teve apresentação de outros participantes da expedição e terminou com uma reverência à água. Em cada poltrona do auditório escondia-se um copo d’agua. A plateia foi convidada a beber o líquido, mas, diferentemente do dia a dia, em que bebemos água inadvertidamente, dessa vez, o chamado era para degustar cada gole, e sentir a presença desse elemento sagrado de maneira consciente e sensorial.

“Aquilo que aprendi com a água, para além de toda a profundidade, é a descoberta do caminho. A água tem a capacidade de nos conectar com nossas emoções e de nos ensinar a fluir na vida, de como podemos viver de uma maneira mais leve. Nos ensina a ser mais generosos, nos unir, é um símbolo de união. Convido a todos para esse movimento para estarem mais atentos, e ver também que mensagens ela nos traz”, conclui Violeta Lapa para ao final da vivência. Que esse convite se estenda a todos nós.

*Juliana Marinho Pires participou da Expedição ‘Açores Atlantis 2019’ como convidada do WWF-Brasil pelo Projeto Oceans and Flow (@oceansandflow) e pela Visit Azores (@visitazores)

Artigo original WWF-Brasil:  https://www.wwf.org.br/informacoes/noticias_meio_ambiente_e_natureza/?77071&fbclid=IwAR1_Jb2sZmhIItmSLANh8QFm32evPwil6A4PfS_YgND46lVH2YWvuCoo_FQ

‘Ocean Talks’ na Universidade dos Açores. Matthieu Paley, Jean Marie Ghislain, Leina Sato, Juliana Marinho Pires, Timo, Henrique Pistilli e Violeta Lapa.